A Música do Coração (crônica)


Hoje, parei para ouvir música Clássica, momento raro que eu me dou o luxo. Estava ouvindo Chopin e uma lembrança veio, muito nítida, do conservatório onde estudei piano. Foram poucos anos. Era a minha paixão, tocar piano, estudar a linguagem musical... Paixão essa que eu dividia pensando em um menino do segundo ano: Mateus o nome dele. Todas as tardes, depois de ver o treino dos meninos no futebol, ou melhor, de ver o Mateus treinando, eu descia a Riachuelo  e subia a lomba da Duque de Caxias. O conservatório era no meio da rua. Uma portinha estreita estilo português, sempre aberta. Uma escada de madeira escura me levava ao segundo andar onde havia uma porta de ferro preta.
Nesta subida, eu sempre ouvia a música que o aluno do horário anterior tocava com agilidade e perfeição, geralmente Chopin. Ele tocava uma ou duas músicas e eu ficava lá...só ouvindo... pensando nas notas e nas partituras. O som ecoava por todo o lugar, era um momento muito especial. Às vezes dava para até ter uma visão...tipo flashes de futuro, de situações que eu passaria.... nessa época eu nem sabia direito o que era, nunca consegui controlar essas coisas... Logo depois era a minha vez, eu me dirigia a um piano vertical marrom escuro que ficava ao lado de uma janela, por onde a luz entrava.
 Eu passava pelo menino, o aluno que me presenteava todas as aulas com aquelas músicas lindas e eu nem o via, passava reto. Nem um oi, nada. Eu era muito objetiva, ficava só imaginando a senhorinha que eu iria enfrentar para aquecer fazendo escala. Ela não tinha paciência alguma e sempre que eu errava ela me dizia que se fosse há um tempo atrás, ela me daria uma reguada. Eu entendia muito bem a ameaça, sabia que ela estava com vontade de bater na minha mão. Eu ficava com medo, claro! ela ainda usava a tal régua,  feita de madeira, deveria ter uns trinta centímetros, mas para mim parecia um metro. Ela usava a régua para levantar a palma da minha mão, toda a vez que eu a abaixava para pressionar a tecla do piano ou quando eu me distraía pensando no Mateus, e sempre era a mesma ameaça. As vezes ela perdia a paciência e depois da ameaça, se levantava do banquinho e olhava pela janela bufando. Nestes momentos as minhas mãos começavam a suar frio, as notas pulavam da partitura; meu coração do peito. Eu tinha a certeza que de que ela queria mesmo era deixar a marca daquela régua na minha mão.   Depois de algumas escalas eu ia para outra sala, a sala maior para tocar com o maestro um senhorzinho muito alegre, sonhador... 
Uma vez, na passagem de uma sala para outra o menino, aquele aluno da aula anterior; das músicas de Chopin, me entregou uma partitura de I Do It for you, do Bryan Adams (algo que só lembrei hoje enquanto escrevia estas memórias). Ela vinha com dedicatória dele. Depois de entregar aquele papel com notas do coração, baixou a cabeça e foi embora. Era dia dos namorados, e eu por mera distração, não tinha ligado este fato com o presente. Não lembro a minha cara, mas deveria ser de espanto ou algo assim...  
O maestro já me aguardava na sala e, depois de alguns segundos, eu entrei. Ele deu uma risadinha enquanto eu enfiava aquela partitura, que teimava a ficar para fora, no meu livro. O Método Rose, era o nome do livro, ele havia sido da minha avó e da minha mãe e eu cuidava como se fosse passar para a minha filha. O meu professor de piano falava que se eu me aplicasse nos estudos, ele me levaria para tocar em concertos na Europa. Eu ria e dizia que isso iria demorar, mas achava possível. Depois, quando chegava em casa, eu contava para minha mãe e ela ficava brava; acho que foi por isso que ela me tirou das aulas, ou porque eu estava indo mal no colégio por causa do Mateus... ou os dois. A sala do maestro era grande, mais iluminada que a outra, era a sala principal, a que dava para a rua. Nela, duas janelas grandes, um piano de cauda preto, quadro negro e cadeira. Todas as sextas era dia de ler partitura. Naquele dia eu juro que não entendi nada, estava um pouco confusa. 
O professor logo desistiu, fomos para o piano: eu ao lado, de pé, com o tique-taque do marcador de ritmo para a parte do solfejo, o professor sentado, tocando. Eu nem lembro de como essa aula terminou, acho que eu toquei piano com o maestro, uma ou duas músicas à quatro mãos e terminou a aula, como de praxe. Não lembro de ter pensado em mais nada além de tocar piano, talvez no fato de tocar piano em um concerto na Europa. Depois da aula eu voltei para o colégio esperançosa em ver o Mateus. 
Desci a  lomba da Duque de Caxias e subi a Riachuelo. Mas naquele dia foi diferente: ele veio me ver. Disse: oi!. Com o coração na boca e batendo fora do compasso, sem saber o que dizer, baixei a cabeça e fui embora.                                       

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