A Mendiga (conto)

Hoje resolvi contar uma história sobre afeto. Estou elaborando pensamentos há muito tempo, tempo que aos 40, já não devem ser estendidos ... O fato, e não a idade, é que quando se para e pensa no sentimento que une pessoas acabamos por criticar a nós mesmos, ou deveríamos.  

Na minha infância fui criada para mendigar afeto, quando estava triste ou deprimida não era bem vista em família, tinha que estar feliz, a final eu tinha tudo: casa, comida e roupas para vestir. O quê mais eu poderia querer? Eu não era uma aluna muito boa na escola, era gordinha e brigona, então meus pais não tinham motivos para me dar muitos elogios, pensava eu. Se você quer um abraço, é só pedir, se quer ajuda, é só falar; mas você não me pediu nenhum beijo! me falavam com frequência. 

Eu tinha uma relação muito boa com a minha avó, que não poupava esforços para me agradar. Ela me ensinou a ter independência e dignidade, com suavidade e respeito. Mas pelo exemplo que eu tinha em casa, acabei julgando o que minha avó havia me provido como: "bajulamento" e "conselhos furados" algo sem importância e fora da realidade... . A realidade era ser exigente? criticar os filhos e ensinar a tirar boas notas? ser magra?  bonita? impressionar para ser notada por todos? casar com um bom partido e depender dele o resto da vida? Como não sou muito chegada a convenções sociais, ao invés de seguir o sistema eu, como se fala nos dias de hoje: "liguei o foda-se", e me rebelei contra o sistema. Fui parar na psicóloga, algo inovador, na época. 

Depois de um tempo e já com o rótulo de ovelha negra da família, tomei gosto pela vida. Entrei na faculdade e fui trabalhar, tudo ao mesmo tempo. Isso já me tornaria "grande" o suficiente para saber com quem me relacionar, certo?! Sim, pensava eu. Foi então que eu me casei. Para ser a dona de casa e profissional perfeita, com a solidez de um amor tranquilo... Primeira briga: não ceder aos caprichos de marido, não vou ficar em casa, não vou cuidar exclusivamente de filhos, não vou me distrair no shopping comprando coisas! vou fazer pós-graduação e abrir a minha empresa e se não quiser, a porta da rua é serventia da casa...Já foi??? Ouvia a minha avó dizendo: isso! seja independente! e minha mãe: mal casou e já está arrumando encrenca com o marido?! não te criei para isso, minha filha! Pois bem, paguei para ver,  ouvi a minha avó  e  me dei bem.  

Mas a vida não foi sempre o mar de rosas que eu achei que fosse e, por mais que eu sempre tenha batalhado pelo meu espaço e em meios masculinos, o relógio bateu as badaladas da maturidade e depois de dez anos resolvi, junto com meu marido, ser mãe. Será que eu, com a infância que tive conseguirei amar meus filhos? Entre fraldas, choros, papinhas e noites sem dormir, uma brecha para a afirmativa: seja dona de casa. Nãããão isso não estava acontecendo comigo! Meu pior pesadelooooo! Para o mundo que eu quero descer!

Então, o pior aconteceu: o destino circular me levou para a minha infância outra vez, MENDIGA DE AFETO, parei de estudar, saí do mercado de trabalho, vivia exausta da rotina estafante e sem dormir e o pior: estava desempregada e bem acima do meu peso. Eu pensava: viu? quem mandou não passar no concurso? Quem mandou engravidar? e por aí vai... O que eu fiz? fui para o psicólogo, em segredo, porque eu não sou louca. Então, os anos passaram e eu sobrevivi a mais uma tempestade, bravamente. 

Parei de mendigar, parei de pedir, mas continuava ganhando esmolas, tudo bem, não me importava mais. As vezes a porta da rua é a melhor solução mesmo... A fria mendiga que dava mais do que recebia, mas mendiga fria também é mendiga! Abraçava os meus filhos com frequência e eles me abraçavam também, mas sem cobranças, sem pedidos, naturalmente como um relacionamento deve ser, leve. Relacionamento com os filhos, ok! Mas passagens pela mendicância nos deixam duros, não confiamos facilmente, temos dificuldade em deixar os outros se aproximarem, estenderem a mão, estamos sempre procurando a razão para tanta esmola. Damos a mais para não recebermos cobranças e continuamos sem nada ... Vaidade em pele de caridade.  

Então um dia, em uma reunião de trabalho sobre um dinheiro que eu estava relutante a aceitar, minha sócia me disse: aceite o que vem dos outros ao menos uma vez na vida, você merece! Eles não estão te pedindo nada, isso é apenas reconhecimento. Aquelas palavras me calaram. Eu passei a vida inteira sem aceitar nada de ninguém, me doando mais do que aceitando receber, mendigando para receber migalhas. Percebi que tudo estava ali, na minha mão, um simples sim acabaria com o caos todo na minha vida, era só aceitar: ajuda, atenção, carinho, cuidados, amor...

E o encanto da mendiga quebrou-se diante dos meus olhos, quando eu percebi que amar é o mais fácil, e o difícil mesmo na vida, é deixar que as pessoas nos amem.            


     
                           


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